terça-feira, julho 10, 2007

Vampyr


Em que gênero podemos colocar O Vampiro (“Vampyr” França / Alemanha, 1932, dir.: Carl Theodor Dreyer)? Será um filme de terror? De mistério? De fantasia? Um filme surreal, expressionista ou de qualquer outra vanguarda da moda? Qualquer uma dessas classificações tornaria o filme menor do que é, pois ele vai muito além de qualquer gênero narrativo ou estético particular. Por isso, vamos dizer apenas que Vampyr é um filme de poesia. Poesia lírica. Ponto.

Mas, afinal, o que é esse chamado cinema de poesia? As definições de poesia são muitas (assim como as suas qualidades), por isso, estou longe de pretender dar uma explicação definitiva; mesmo assim, eis o que eu sinto: cinema de poesia (assim como a própria poesia literária) é aquele dotado de uma linguagem e de uma atmosfera líricas (sem ser necessariamente subjetivas, pois sabemos que um poema “objetivo” pode ser profundamente lírico; leia-se A Maçã, de Manuel Bandeira, e O Elefante, de Carlos Drummond de Andrade, dentre muitos outros exemplos desses e de outros poetas), carregadas de figuras de linguagem (metáforas, metonímias, antíteses, hipérboles, etc), rimas visuais, aliterações e assonâncias “visuais” (a repetição de certos elementos), uma cadência rítmica quase musical. Mas também há recursos estilísticos não-literários, especificamente cinematográficos, que fazem a poesia de um filme: a maneira como a câmera capta de maneira meditativa o tempo e o espaço, procurando sempre a fotogenia de todas as coisas. O que é fotogenia?

A fotogenia é este aspecto poético extremo das coisas ou dos homens, suscetíveis de nos ser revelado pelo cinema. Louis Delluc

Vampyr é um dos filmes mais fotogênicos que já vi.

O cinema de poesia é prenhe de um conteúdo que transcende o cotidiano (sem o desprezar), manifesto em uma forma que foge o máximo possível do prosaico, do descritivo, do narrativo, ainda mais do dissertativo. A poesia não tem Razão; sua lógica é outra. A poesia sugere, intui, estabelece associações e correspondências que fazem parte da natureza do pensamento primitivo, mágico, mítico, religioso, e, finalmente, artístico. Tal é o cinema de poesia.

A epígrafe de Vampyr bem que poderia ser a maravilhosa frase de Abel Gance: “O cinema é a música da luz”. É exatamente o que vemos na tela. A luz canta e dança, junto com as sombras. A fotografia poética de Rudolph Maté e a iluminação onírica lembram Limite (1931), de Mário Peixoto, também profundamente poético e metafísico.

Ao lado da luz, que parece dotada de vida e vontade próprias, animada – dotada de anima = ânimo / alma –, temos, na película de Dreyer, as sombras, definitivamente animadas e independentes. É belo e clássico o baile das sombras fantasmagóricas. Vem-me imediatamente à cabeça as “sombras elétricas” (que é como os chineses primeiro chamavam o cinema). Sombras elétricas = almas elétricas. É a própria alma do cinema. Essas sombras com vida própria são autênticos espíritos (o assombrado), ou, numa chave psicológica, representações do inconsciente ou do seu lado mais “obscuro”; a sombra que cada um carrega dentro de si. No filme, ocorre o embate entre os poderes da luz (os vivos) e os da sombra (os mortos-vampiros), ambos possuidores de grande força anímica.

Vampyr é uma grande expressão do espírito romântico europeu. Mostra as aventuras do jovem Alan Gray, especialista em demonologia, a quem o próprio filme chama de "um sonhador, para quem as fronteiras entre o real e o imaginário tornaram-se obscuras". Seu vagar sem destino o leva a uma estalagem campestre, na qual ele começa a presenciar estranhos acontecimentos. Descobre a presença de um vampiro que está escravizando uma bela moça. Tenta libertá-la. Mas o espectador não pense que verá aqui aquele vampiro de capa preta e dentes caninos salientes. O poder vampiresco é puramente espiritual, ou psíquico – se preferir uma chave materialista / psicanalítica. Todo o filme caminha entre as nuvens do vago e do abstrato. Nas peripécias de Alan Gray, acabamos jogados dentro de um universo onírico povoado pelo incompreensível, e, a partir de certo momento até o final, a narrativa fica toda muito confusa. Quem gosta do bizarro, do surreal e dos labirintos narrativos de David Lynch, deve conhecer esta grande fonte.

O Vampiro, de Carl T. Dreyer, é um filme na passagem do mudo para o sonoro – assim como M, O Vampiro de Dusseldorf, de Fritz Lang, que discutimos ontem. Porém, diferentemente, deste último, o cineasta escandinavo faz a preferência pelo mudo. O filme é quase todo silencioso, com uma narrativa na forma daquelas legendas de tela inteira típicas da era muda. Os primeiros planos constituem uma assinatura estilística fundamental no cinema de Dreyer. Mas, se em Paixão de Joana D’Arc (1928) é o rosto humano destacado pela câmera próxima, em Vampyr chamam a atenção os primeiros e primeiríssimos planos de objetos (inanimados? veja-se a caveira ou a mão esquelética segurando o vidro de veneno).

Enfim, nem só de fotogenia vive o cinema. Depois de ver a obra-prima de Dreyer, podemos começar a falar de umbrogenia...


2 comentários:

Moacy Cirne disse...

Eu doiria que temos, aqui, uma análise quase perfeita do filme "O vampiro". Dreyer - sobretudo com "Dia de ira", "A palavra", "Joana d'Arc" e "Gertrud" - é um dos smeus cineastas preferidos, ao lado de Antonioni, Welles, Godard, Ford, Bresson, Mizoguchi, Bergman, Buñuel, Renoir, Keaton, Vertov, Straub (& Huillet) e poucos outros. Um abraço.

Lorde David disse...

Oi, Andros. Muito bom o teu blog. Já o linkei ao meu e te convidei para um desafio. Passe lá, se quiser participar. Um abraço.